Primeiro Contacto Ford GT. O dia em que conduzimos e pilotámos o supercarro feito para vencer Le Mans

O adeus

Ford GT. O dia em que conduzimos e pilotámos o supercarro feito para vencer Le Mans

Com a despedida anunciada do Ford GT, recordamos o momento em que conduzimos este carro de corridas capaz de circular nas vias públicas.

Ford GT em circuito

Nota: Este teste ao Ford GT foi realizado e escrito originalmente em 2016.

A surpresa foi enorme. No Salão de Detroit de 2015 a Ford desvendava um novo e impressionante GT, um projeto tão secreto que, mesmo dentro da empresa, apenas uma dúzia de pessoas tinham conhecimento dele.

Um superdesportivo carregado de simbolismo e ambição, reinventado para o séc. XXI, após a homenagem, ainda muito «colada» ao GT40 original, lançada em 2004. Chegaria ao mercado em 2016.

“Trabalhei no GT de 2004 e agora fui o engenheiro-chefe desta nova geração e, por isso, a minha vida está muito ligada a este carro nos últimos 12 anos, na maioria dos quais todas as pessoas me foram bombardeando constantemente com a mesma questão: quando é que vão fazer um novo GT e quando vão regressar a Le Mans?”

Jamal Hameedi, engenheiro-chefe do Ford GT
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Ford GT40 com cários Ford GT ao fundo
Ford GT40, o original. Ao bater os «invencíveis» Ferrari em Le Mans em 1966, tornar-se-ia num símbolo e numa lenda.

Olhando para o novo GT é evidente que a silhueta conserva os genes das duas primeiras gerações. Neste caso, a Ford não fez testes preliminares com potenciais clientes porque iria atrasar a conclusão do projeto pelo menos um ano, impedindo-o de estar pronto para a efeméride de Le Mans e do GT40 — em 2016 celebravam-se os 50 anos sobre a vitória histórica de 1966.

Mas os mentores do projeto estavam confiantes de que sabiam o que o mundo esperava do terceiro GT, como explica Craig Metros, designer de exteriores: “Queríamos algo que não fosse sobre-estilizado, que parecesse sério e ameaçador, além de ter uma beleza estonteante… e julgo que fomos bem sucedidos”, conclui.

dois Ford GT, de frente e traseira
O Ford GT não deixou “pedra sobre pedra”: novo chassis, novo motor e cockpit inédito para este superdesportivo de coleção, nascido como carro de corridas… que também pode andar na estrada pública.

O trabalho no túnel de vento foi intenso e longo, tendo determinado uma secção frontal pequena, o que acabou por posicionar condutor e passageiro muito perto um do outro; algo que se nota quando nos sentamos com alguém no cockpit, porque nem é preciso ser muito encorpado para ficar a roçar cotovelos e (quase) ombros com o parceiro de viagem.

Os engenheiros pressionavam, por outro lado, para chegar o motor (que é bastante estreito) o mais à frente possível e essas duas intenções moldaram a forma geral do GT que, observado de cima, parece uma fuselagem em forma de lágrima, com o motor e o cockpit formalmente relacionados e com o para-choques traseiro quase «independente» lá atrás.

Ford GT, vista de topo

Toda a carroçaria é feita em fibra de carbono o que teve as habituais vantagens de uma massa mais baixa, mas também ajudou os designers a criarem as formas que seriam difíceis de moldar com outros materiais.

Ambiente de corridas

O próprio painel de bordo é constituído por uma única peça de fibra de carbono, com os decorrentes benefícios em termos de rigidez da estrutura.

A monocoque do GT é, também ela, em fibra de carbono, e está ligada à base dos dois bancos, que não se deslocam longitudinalmente — as costas sim, mas para o condutor regular a sua posição de condução, são os pedais e a coluna de direção que se aproximam dele, como nos carros de corridas.

“Há coisas no GT que não existem em mais nenhum carro no mundo, seja a que preço for, como, por exemplo, a estrutura tubular do cockpit em aço que funciona como gaiola de proteção em caso de capotamento (aprovada pela FIA); mais uma demonstração de que o carro foi desenvolvido para a pista e que acrescenta um pouco de peso na versão “civil”, mas torna o carro aquilo que ele deve ser”.

Jamal Hameedi, engenheiro-chefe do Ford GT

Muitos dos donos do Ford GT aceitam que o seu carro não seja o mais leve do segmento dos superdesportivos e sentem-se seguros por levar «às costas» esse elemento de proteção dos ocupantes, obrigatório na competição, e que acrescenta “cachet” à versão de estrada.

A voar baixinho…

A suspensão do Ford GT é do tipo push-rod (esquema típico de carros de corridas) com um sistema hidráulico que controla a distância ao solo — que pode ir dos 120 mm aos 70 mm — e que foi desenvolvido para permitir duas diferentes afinações das molas helicoidais em cada altura ao solo a que o veículo se encontra.

Por outras palavras, mesmo na posição mais baixa a Ford afirma que pode ser mantido o nível de amortecimento mais confortável, se for esse o desejo do condutor.

Quando na altura ao solo mínima de 70 mm, o Ford GT de estrada fica praticamente tão baixo como o Ford GT de competição — altura ao solo de 57 mm à frente e de 65 mm atrás — que ganhou as 24 Horas de Le Mans de 2016 na sua categoria.

A escolha por este esquema de suspensão push-rod permitiu ainda arrumá-la mais ao centro do carro e libertar a zona à volta das rodas para funções de arrefecimento e de aerodinâmica.

Outro sinal da ligação à competição são os amortecedores com válvula de bobina (têm um espetro de atuação mais amplo que os convencionais, permitindo uma maior rigidez da suspensão sem que o carro se torne demasiado desconfortável), utilizados pela maioria das equipas de Fórmula 1 e de outras especialidades de ponta no desporto automóvel e, neste caso, com controlo eletrónico, o que foi uma estreia mundial na indústria (controlam a função de amortecimento e as funções hidráulicas do GT).

De V8 para V6

O downgrade de motor V8 para V6 poderia suscitar controvérsia tendo em conta a tradição do superdesportivo sexagenário — até chegar este GT foi sempre V8 —, mas a redução da cilindrada (5,4 l para 3,5 l) não impediu que a potência tivesse passado de 550 cv para 655 cv e o binário máximo de 678 Nm para 745 Nm.

Motor V6 do Ford GT

Um aumento fruto da maior sofisticação tecnológica do novo propulsor: injeção direta e indireta, e dois turbos em vez de apenas injeção indireta e um super-compressor como no modelo de 2004.

O sistema de cárter seco é fundamental para garantir que a lubrificação funciona a preceito mesmo na presença de forças g muito elevadas como seria de esperar num superdesportivo destinado a andar com alguma frequência em pista.

A caixa é da Getrag e é automática e de dupla embraiagem, de sete velocidades, fisicamente integrada na suspensão traseira e faz parte da estrutura física do subchassis posterior.

Ford GT na estrada, frente

Uma configuração que não aparece apenas em alguns dos maiores supercarros de todos os tempos, como o Ferrari F50, mas também é um elemento-chave do conceito técnico dos carros de corrida mais competentes do mundo, seja em Le Mans ou na Fórmula 1.

Aos comandos

Inicialmente a condução decorre em asfaltos públicos, na ligação da cidade até ao circuito UMC (Utah Motorsports Campus), num misto de estradas nacionais e autoestrada.

Acedo ao cockpit com alguma ginástica — bancos e teto são muito baixos, mas ao menos a porta já não integra parte do tejadilho como dantes, o que tanto podia facilitar o acesso como causar problemas em zonas com pouco espaço e promovia dolorosas cabeçadas dos ocupantes principalmente ao sair do carro.

Joaquim Oliveira aos comandos do Ford GT

Sento-me na baquet fixa para começar a ajustar a posição de condução, num ambiente sombrio inteiramente dominado por fibra de carbono e Alcantara, empurro o pedal de apoio para trazer o conjunto de pedais móveis para mais perto, ajusto a altura e profundidade da coluna de direção e está feito.

Botão “start engine” e o V6 desperta de forma tranquila, sem o pico de rotação momentâneo (usado em muitos desportivos) para colocar condutor e presentes em sentido mesmo antes do carro começar a andar.

Botão start engine

Hameedi explica que a ideia foi que tudo fosse o mais natural possível, razão pela qual não existe também alteração do som do motor dependendo do modo de condução e só uma condução arraçada de pilotagem dura consegue gerar alguns rateres nas passagens de caixa.

Nascido para a pista

Desde logo se torna evidente que este é um carro de corridas na sua essência, porque depois do processo de acerto da posição de condução começo a sentir as pedras do asfalto a embater por baixo do carro e nas cavas da rodas de modo não filtrado — um efeito sonoro habitual nos veículos de competição, o que cria uma atmosfera especial a bordo.

Especiais são também as performances, claro, e mesmo estando as acelerações e velocidades vertiginosas reservadas para a pista, logo aqui dá para perceber que o Ford GT é um carro muito rápido, em acelerações a velocidades «quase» legais e nas retomas de velocidade, tendo os engenheiros da Ford Performance sido capazes de restringir o efeito de atraso da resposta do turbo de forma satisfatória.

Patilhas de mudança de relação

Sente-se um pouco em modo manual de passagem de caixa, porque a função kick-down não está ativa, mas deixa de existir em modo automático.

Aqui percebo que se conduzir em modo automático e usar as patilhas atrás do volante, o programa automático é mais intrometido do que gostaria, passando «uma acima» quando não é essa a minha ideia, pelo que o melhor mesmo é apertar o botão “M” no comando rotativo da transmissão para garantir que assim nos entendemos.

Aproveito uma secção de estrada mais sinuosa, e sem sinais de polícia, para aumentar a cadência e o GT «agradece» com uma resposta muito rápida e precisa da direção, um comportamento marcado pela enorme estabilidade da carroçaria e uma capacidade de travagem que, de tão forte, obriga a uma reparametrização do que são as distâncias adequadas para aquela velocidade e aquela curva.

Mais do que uma vez o carro quase se imobilizou antes da curva porque travei mais do que teria sido necessário — é claro que a aerodinâmica muito apurada do GT também teve o seu papel neste engano provocado ao condutor.

Antes da chegada ao circuito, meia dúzia de quilómetros sobre asfalto irregular mostram que essa não é a superfície predileta do Ford GT, gerando um pouco agradável trepidar dos ocupantes, mesmo no modo de condução mais «pacato».

A um dado momento opto mesmo por subir a frente do carro, o que se concretiza com um «clunk» e uma subida repentina como se alguém me tivesse dado um chuto nos glúteos. Subidas eletrónicas e suaves não são para aqui chamadas. Orgânico e natural? Check!

A entrada em circuito ganha solenidade com a colocação do capacete e a proteção da coluna cervical, além da presença do piloto profissional ao lado para moderar os ímpetos.

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Depois de um novo «clunk» — modo de condução “Track” e a bacia cai um degrau de 5 cm — e o GT está pronto para uns 20 minutos de maior exigência, suficientes para uma série de oito voltas através das quais dá para perceber como funciona o GT no seu elemento.

Ford GT em circuito, frente

As impressões iniciais de enorme competência não são minimamente beliscadas: sensacional equilíbrio do chassis, direção e travagem de enorme competência, dando ainda para sentir a muito elevada capacidade de aderência da frente do carro, sem dúvida uma consequência direta do efeito de solo que é gerado pelas entradas de ar na dianteira.

Sobre velocidade pura e acelerações os números falam por si: 2,9 s de 0 a 96 km/h (60 mph) e quase 350 km/h chegam para assegurar que, para o Ford GT, a vida (re)começou aos 50!

Ford GT em circuito, traseira

Quanto custa?

Quando foi lançado em 2016, nos Estados Unidos da América, o Ford GT foi colocado à venda por 450 000 dólares, mas chegou à Europa por quase 600 000 dólares (mais de 550 mil euros). Atravessar o Atlântico custa sempre muito aos automóveis americanos…

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Hoje, esta terceira geração de Ford GT já anda a ser transacionada em leilão por mais de um milhão de dólares (aprox. 940 mil euros). Com o fim da produção já anunciado, por meio de duas edições especiais e limitadas, o GT LM Edition (20 unidades) e o GT Mk IV (67 unidades e exclusivo para pista), é de esperar que os preços continuem a subir.

A produção do GT termina neste final de dezembro de 2022, totalizando 1350 unidades feitas pela Multimac para a Ford, desde 2016.

Detalhe da roda/travão, a fumegar
Missão cumprida!

Descubra o seu próximo automóvel:

Especificações Técnicas

Ford GT
Motor
Posição Central Traseiro Longitudinal
Arquitetura 6 cilindros em V
Capacidade 3497 cm3
Distribuição 4 válv. por cilindro (24 válv.)
Alimentação Inj. direta/indireta, biturbo, intercooler
Potência 655 cv às 6250 rpm
Binário 750 Nm às 5900 rpm
Transmissão
Tração Traseira
Caixa de velocidades Automática (dupla embraiagem) de 7 velocidades
Chassis
Suspensão FR/TR: Independente duplos braços sobrepostos de comprimento diferente, push-rod/balanceiro de ativação da barra de torção, amortecedores eletrónicos, duas posições de altura ao solo e de afinação das molas;
Travões FR/TR: Discos carbo-cerâmicos, ventilado
Direção/N.º voltas ao volante Assistência hidráulica/2,6
Diâmetro de viragem 12,2 m
Dimensões e Capacidades
Comp. x Larg. x Alt. 4779 mm x 2003 mm x 1059 mm
Distância entre eixos 2710 mm
Rodas FR: 8,5jx20, 245/35 R20; TR: 11,5jx20, 325/30 R20
Massa 1385 kg (DIN)
Prestações e consumos
Velocidade máxima 347 km/h
0-96 km/h 2,9s
Consumo combinado 16,8 l/100 km (NEDC)
Emissões CO2 395 g/km (NEDC)

Ford GT. O dia em que conduzimos e pilotámos o supercarro feito para vencer Le Mans

Primeiras impressões

8/10
Recordamos este primeiro contacto para celebrar o Ford GT, um supercarro feito para vingar nas pistas, mas capaz de circular legalmente na via pública. Nota-se a personalidade de carro de corridas na forma pouco filtrada como se conduz/pilota, na ausência de materiais de insonorização, na conceção do habitáculo e até no modo cru como o carro pisa o asfalto ou como o seu V6 biturbo responde. Em pista é extremamente eficaz, com prestações estonteantes, uma capacidade de travagem inacreditável e um eixo dianteiro com níveis de aderência quase inverosímeis. Alguns notarão alguma falta de qualidade (acabamentos e materiais) difíceis de aceitar num carro que tem um preço superlativo. Mas essas até podem ser questões de somenos importância numa peça de coleção que agora deixou de ser fabricada.

Prós

  • Aderência em curva
  • Performances
  • Travagem sensacional

Contras

  • Ruído no cockpit
  • Preço
  • Conforto em maus pisos
  • Materiais/acabamentos