Crónicas Impostos e portagens. Estes carros foram feitos à medida de Portugal

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Impostos e portagens. Estes carros foram feitos à medida de Portugal

Certas leis e impostos deram origem a versões de automóveis que só existem em Portugal. Algumas são bizarras, outras até são muito desejáveis.

BMW 320is Portugal

Não me parece haver dia mais indicado do que o dia 10 de junho, o Dia de Portugal, para falar de uma outra classe de automóveis nacionais — uma quase subespécie automóvel —, que, apesar de não terem marca portuguesa e nem sequer terem sido produzidos cá, podemos considerá-los «muito nossos».

São versões específicas que foram exclusivas ou praticamente exclusivas, do nosso mercado, criadas propositadamente para contornar as particularidades fiscais ou legais de Portugal.

Alguns quase que os podemos considerar… bizarros, mas a maioria são coloridas curiosidades — um deles até passou a ser um desejado clássico.

BMW 320is, frente
BMW 320is. Glorioso.

Um M3 com sotaque luso-italiano

E podemos começar mesmo por esse desejado clássico, o BMW 320is (E30), apelidado por alguns de “M3 italiano”… Italiano? Sim, italiano, porque, ao contrário de outros modelos nesta lista, o 320is não foi um exclusivo nacional, tendo sido vendido também em Itália, onde vendeu muito mais.

O 320is só se vendeu nestes dois mercados e tudo porque Portugal e Itália taxavam — e continuam a taxar — o tamanho do motor, ou seja, a cilindrada.

Ontem como hoje existiam vários escalões e um deles terminava precisamente nos 2000 cm3. Modelos acima desta cilindrada eram fortemente penalizados pela fiscalidade.

Isto trouxe alguns dissabores a várias marcas, incluíndo a BMW. Em 1986, a marca bávara dava a conhecer o primeiro M3 de todos. Por baixo do capô residia o S14, um bloco de quatro cilindros em linha com 2302 cm3. Por cá já era considerado um “carro de alta cilindrada” — os americanos riram-se…

Para evitar a penalização fiscal, a BMW desenvolveu o 320is e mostrou-o em 1987. Ao reduzir o curso dos cilindros do S14, a cilindrada desceu para uns mais amigáveis 1990 cm3. O motor debitava 192 cv, apenas menos 3 cv de potência que o M3.

BMW 320is motor
O mesmo S14 do M3, mas com menos 0,3 l de capacidade.

Continuava a ser um dos Série 3 mais desportivos à venda e do M3 recebeu a mesma caixa de velocidades, com a primeira para trás (dogleg), o diferencial autoblocante e o painel de instrumentos.

De fora ficava a suspensão, os travões e os alargamentos da carroçaria. Mesmo assim, a suspensão tinha um acerto específico, os travões vinham dos Série 3 de seis cilindros e a carroçaria recebia o body-kit M Technic II. Além da carroçaria de duas portas, o 320is foi também disponibilizado, a partir de 1988, com a carroçaria de quatro portas.

O BMW 320is foi vendido durante três anos e hoje é um modelo de culto entre os aficionados da marca e do Série 3. É mais raro que o M3 E30, o que tem contribuído para uma crescente valorização.

Um 190E só para nós

O Mercedes-Benz 190E 1.7, por outro lado, talvez não valorize de igual forma, apesar de o «baby-Benz», no geral, estar a valorizar.

Este 190E 1.7 é efetivamente um exclusivo nacional. Mais uma vez a nossa «mania» de taxar a cilindrada é a razão por detrás desta criação.

O motor mais pequeno do 190E tinha 1,8 litros de capacidade, mais precisamente, 1797 cm3. Isto colocava-o acima do escalão dos 1750 cm3 do nosso IA (Imposto Automóvel).

Convém realçar que o 190E 1.8 era o resultado de um downsizing do bloco de 2,0 litros, também usado no modelo, com curso mais curto. Mas para Portugal o motor teria de ter ainda menos capacidade.

Não sabemos bem como, mas uma ainda jovem Mercedes-Benz Portugal conseguiu convencer a casa-mãe a fazer exatamente isso. A Mercedes reduziu o diâmetro do cilindro (instalando novas camisas e pistões), baixando a cilindrada para os 1737 cm3, perdendo magros 2 cv pelo caminho.

O efeito foi substancial… no preço. O 190E 1.7 ficou a custar menos de 5000 contos (menos de 25 mil euros), uma redução de mais de 1500 contos (7500 euros) em relação ao 1.8, colocando-o em paridade com o seu maior rival na altura, o BMW 316i.

Uma aberração chamada lei das portagens

Não é só o taxar da cilindrada que pode minar o potencial de sucesso de um modelo em Portugal — sim, GR86, estou a olhar para ti…

novas taxas de portagem

Portugal, na sua infindável originalidade, criou uma lei das portagens que separa os veículos Classe 1 da Classe 2 medindo a distância do solo ao capô, numa linha vertical que passa pelo eixo dianteiro. Sim, leu bem.

Bizarro? Sem dúvida. Talvez fizesse (algum) sentido quando os carros eram mais pequenos e os únicos veículos Classe 2 eram, sobretudo, de mercadorias. Mas hoje? Um anacronismo injustificável — basta ver a quantidade de exceções que existem à lei, quase a tornando inútil…

A diferença de preço entre as duas classes é substancial e pode determinar o sucesso ou insucesso de um modelo. Veja-se o caso dos comerciais da Stellantis produzidos em Mangualde, que levaram a uma alteração da lei das portagens; ou da primeira geração do Opel Mokka, que foi um sucesso na Europa, mas em Portugal é mais fácil avistar um Ferrari do que o pequeno SUV alemão.

O mesmo ia acontecendo com o Renault Kadjar, lançado na Europa em 2015, mas que só chegou a Portugal 18 meses depois, no início de 2017.

Renault Kadjar a passar por poça com lama.

Caso fosse lançado em Portugal como «veio ao mundo», o Kadjar seria Classe 2 nas portagens nacionais, o que condenaria a carreira comercial do SUV antes mesmo de começar. Para garantir que fosse Classe 1, foi necessário modificar o modelo.

Uma das exceções à lei, a “Tarifa Especial Classe 1”, estipula que se o veículo medir entre 1,1 m e 1,3 m à vertical no eixo e tiver um peso bruto superior a 2300 kg, pode ser Classe 1. Desde que use, obrigatoriamente, a Via Verde.

Como os Kadjar de tração dianteira tinham um peso bruto inferior, a Renault substituiu o eixo traseiro semirrígido pelo da versão 4×4, com suspensão independente multibraços.

Funcionou. Mas custou à Renault Portugal 18 meses de vendas, uma nova homologação e uma solução à medida.

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Fica mais barato como veículo de mercadorias

Às vezes os próprios importadores têm de ser criativos quando modificar um modelo se torna impraticável. Sabendo que os ligeiros de mercadorias eram menos penalizados fiscalmente, nasceu um novo fenómeno em Portugal: versões topo de gama de turismos (cinco lugares) convertidos em comerciais (dois lugares e uma antepara a separar do compartimento de carga).

Talvez o mais lendário de todos tenha sido o SEAT Ibiza GT TDI, que dava acesso ao adorado 1.9 TDI de 110 cv por muito menos dinheiro. E talvez seja o único caso mundial onde um automóvel mudou… de género gramatical. Ainda hoje é “a” Ibiza…

SEAT Ibiza GTI, frente 3/4
© SEAT Este é um Ibiza GTI, mas o GT TDI era praticamente igual.

Mas esta «borla» fiscal acabaria por gerar criaturas mais bizarras, como o Citroën Saxo Cup Enterprise que perdia os lugares traseiros e ganhava uma antepara em acrílico. Semicerrando os olhos quase que podia ser a versão lightweight (mais leve) do pequeno desportivo…

Mais estranho ainda foi o Mazda MX-3, o pequeno coupé japonês que, originalmente, era um 2+2. Na verdade, os bancos traseiros já eram mais de último recurso do que propriamente usáveis.

Nasceu assim o Mazda MX-3 Vannome épico — que, tal como o Saxo Cup, perdia dois lugares e ganhava uma antepara em acrílico, ficando várias centenas de contos mais barato (alguns milhares de euros). O melhor? Podia ter um MX-3 1.8 V6 “comercial”.

Temos ainda o caso do Jeep Wrangler, bem mais recente. A variante longa de quatro portas e cinco lugares tem uma intrusiva antepara metálica fixa entre os lugares traseiros e a bagageira. É mais um exclusivo nacional.

E porquê? Desta forma este ligeiro de passageiros passa a ser classificado como pick-up (veículo com carroçaria de caixa aberta) e o valor do ISV leva um tombo superior a 30 mil euros (!). Legal e homologado.

Jeep Wrangler Sahara, perfil
© Fernando Gomes / Razão Automóvel Não parece, mas estão a ver uma pick-up!

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