Crónicas O início da era elétrica

O melhor da década 2011-2020

O início da era elétrica

Houve várias falsas partidas nas últimas décadas, mas nesta última, de 2011 a 2020, a partida parece ter sido definitiva: é o início da era elétrica.

Botão arranque

Porquê só agora? Como em praticamente tudo, não podemos resumir apenas a um evento a eletrificação do automóvel. Várias peças foram sendo posicionadas ao longo dos anos para que o início da era elétrica começasse verdadeiramente.

Entre elas a introdução de novos regulamentos, programas de incentivos estatais, a chegada de novos atores e nem sequer faltou um escândalo, talvez a peça-chave para o acelerar do processo (pelo menos aqui na Europa).

Foi no pós-crise de 2008 que foram dados os passos decisivos para que tudo se conjugasse. Alguns gigantes da indústria viram a sua existência colocada em causa e mesmo novos players, como a Tesla, estiveram em risco de desaparecer.

ESPECIAL: O melhor da década 2011-2020
Carga da bateria

Todas as crises são sinónimo de oportunidade…

… ou assim diz essa velha máxima. E nesse período foram várias as startups que surgiram um pouco por todo o mundo a propor o que parecia ser o automóvel v2.0 para um mundo que procurava reerguer-se, tendo quase todos eles um aspeto em comum: ser 100% elétrico.

Várias peças já tinham sido colocadas no tabuleiro para que a era elétrica se iniciasse. A luta contra o aquecimento global não era nova — desde o final do século passado que era um tópico… quente de discussão — e a redução das emissões dos gases de estufa era a sua face mais visível.

Na Europa isso traduziu-se num calendário com muitos marcos para atingir e metas por alcançar até ao final da nova década (2011-2020). Desde a introdução progressiva de normas de emissões cada vez mais exigentes — ou seja, tudo o que saía do tubo de escape dos automóveis, não só gases de emissões de estufa, como também outros poluentes —, até ao estabelecer de metas de redução das emissões de CO2.

As primeiras conhecemo-las como normas Euro. Começaram por ser introduzidas em 1992, mas desde, pelo menos 2006, que estava agendada a introdução da Euro5 em 2009 e a Euro6 em 2014.

A redução das emissões de CO2 tinham o seu próprio agendamento: em 2009 foi definido que as emissões da frota de automóveis ligeiros novos na Europa deveria ser de 130 g/km em 2015 — objetivo que foi facilmente atingido pela indústria — e de 95 g/km em 2020. Uma revisão das metas em 2014 empurrou a meta das 95 g/km para 2021 — em 2020, só 95% da frota tinha de cumprir a ambiciosa meta.

Emissões CO2 95 g/km
O número mais temido?

O incumprimento no atingir dessas metas de redução de CO2 implicaria (e continua a implicar) pesadas multas (95 euros por grama a mais por carro), o que poderia significar um valor suficientemente grande para colocar em causa a viabilidade financeira de um construtor automóvel.

Tornava-se claro desde logo no início da década passada (2011), para toda a indústria, que o motor de combustão interna por si só não iria ser suficiente para atingir todas as exigentes metas propostas e que mais exigentes ficariam pós-2020.

No resto do mundo, ou melhor, em certos mercados chave, a história não foi muito diferente da que vimos na Europa.

Na China, desde o início do século XXI que se discutia os NEV (New Energy Vehicles) ou Veículos Novas Energias (focado, sobretudo, nos automóveis híbridos e elétricos). Um programa que arrancou, primeiro, em algumas cidades a partir de 2008, ao mesmo tempo que o país destacava-se, de uma vez por todas, como o maior mercado automóvel do mundo — de 2011 a 2016 as vendas subiriam das 17 milhões unidades anuais para as 27 milhões.

Um valor imenso — na Europa, por exemplo, andam pelas 14-15 milhões de unidades anuais — que se revelou crucial para garantir os volumes necessários para garantir os retornos dos elevados investimentos a fazer em novas tecnologias por parte da indústria automóvel.

Pequim

Nos EUA, mais especificamente, no estado da Califórnia (que tem marcado a sua própria agenda, quase nunca em sintonia com a do restante país), também já se tinham estabelecidas metas para quotas de venda de veículos ZEV (veículos de zero emissões) ao mesmo tempo que endurecia as metas de redução das emissões de gases com efeito de estufa dos automóveis.

TEM DE VER: 95. Este é o número mais temido da indústria automóvel. Sabe porquê?

Resposta da indústria

Como é possível de constatar, o cerco aos motores de combustão interna iria rapidamente começar a apertar. As maiores exigências em matéria de emissões traduziam-se em custos acrescidos de desenvolvimento e produção, para estar em conformidade com todos os requisitos. Tendo em conta o que aí vinha, na Europa, alguns responsáveis de dentro da indústria automóvel desenhavam um cenário até ao final da nova década.

Esse cenário previa que a dependência do mercado europeu de motores Diesel atingiria um pico em 2011-12 (o que veio efetivamente a acontecer), a tecnologia favorecida pela indústria e UE pós-tratado de Quioto para reduzir as emissões de CO2, dependência que desceria progressivamente até ao final da década.

Os custos de desenvolvimento de motores Diesel mais eficientes em simultâneo com sistemas de tratamento de gases de escape mais eficazes para cumprir todos os regulamentos subiriam substancialmente que, no final da década, só faria sentido usar motores Diesel em veículos nos segmentos mais elevados, onde esses custos poderiam ser melhor absorvidos.

Muitos já diziam que, no futuro, só o adicionar de veículos elétricos e eletrificados ao mix de vendas seria a solução para cumprir tão exigentes metas. Talvez por isso, tenhamos assistido à antecipação da entrada na era elétrica logo no início da década passada por alguns construtores, quando o mundo ainda tentava erguer-se da crise financeira.

Por um lado, a Daimler e a Toyota (que já apostava forte nos veículos eletrificados com a sua tecnologia híbrida) compraram participações numa jovem Tesla em, respetivamente, 2009 e 2010 — salvando-a, literalmente, da extinção durante a crise, palavra de Musk —, tendo em conta a sua promissora tecnologia. Daí nasceram variantes elétricas do Mercedes-Benz Classe B e do Toyota RAV4, com tecnologia Tesla (partilhada, em parte, com a do definitivo Model S, lançado em 2012), mas com pouco ou nenhum impacto comercial.

Nissan Leaf
Nissan Leaf

Por outro lado, a Aliança Renault-Nissan, liderada por Carlos Ghosn, foi o gigante automóvel que mais forte apostou na antecipação da democratização do automóvel 100% elétrico. A Nissan apresentaria, ainda em 2010, o primeiro Leaf, enquanto a Renault juntar-se-ia à sua parceria pouco tempo depois, com o Fluence Z.E. em 2011 e com o Zoe em 2012 (ainda em comercialização e o automóvel elétrico mais vendido na Europa em 2020).

Os objetivos comerciais eram muito ambiciosos, com Ghosn a prever, decorria o ano de 2009, que os automóveis 100% elétricos teriam uma quota global de 10% em 2020… Chegados a 2020, que foi o melhor ano de sempre para os veículos 100% elétricos, a quota de mercado mundial está nos 2,8% (4,5% se incluirmos os híbridos plug-in), mesmo tendo em conta a queda de 14% do mercado automóvel mundial por culpa da pandemia.

Renault Zoe
Renault Zoe

Também a BMW foi uma das pioneiras. Em 2011 revelava ao mundo a sua nova submarca BMW i, focada na mobilidade sustentável nas mega-cidades do futuro. A abordagem foi a mais ambiciosa: para atingir os seus fins não só apostou na eletrificação total ou substancial do automóvel (híbridos plug-in), como parecia querer reinventar a forma como os automóveis eram construídos.

O BMW i3 (2013), por exemplo, ainda é hoje o único veículo de produção de grande volume a recorrer tão extensivamente à fibra de carbono (um material que, até então, era aplicado de forma praticamente artesanal). O objetivo era reduzir substancialmente a massa do veículo para garantir o melhor valor de autonomia possível com as baterias de então.

Porém, apesar destas propostas e outras, como o Mitsubishi i-MIEV, os veículos elétricos continuaram a ser de nicho no plano comercial, à exceção, talvez, do Tesla Model S (e, mais para o final da década que findou, o Tesla Model 3).

Dieselgate, a peça final

Todos estes desenvolvimentos aconteceram ainda durante a primeira metade da década e assim chegamos a 2015. Sobre o tabuleiro europeu as peças já estavam todas delicadamente posicionadas, só sendo necessário ter em atenção o calendário para tudo o que já tinha sido definido: desde as normas Euro aos testes WLTP (introduzido em setembro de 2018 para substituir o insuficiente NEDC), às metas de emissões de 95 g/km. Só faltava uma peça final para arrancar, em definitivo, com a era elétrica.

Foi em setembro de 2015 que o tabuleiro de jogo virou em definitivo. Do outro lado do Atlântico, durante a realização de testes de emissões em condições reais a um Volkswagen Golf TDI, constata-se que o EA 189, o quatro cilindros Diesel que o equipava, emite muito mais gases poluentes do que aqueles que são oficialmente anunciados — sobretudo os nefastos NOx ou óxidos de azoto, prejudiciais à saúde humana.

Volkswagen EA 189

O que seria chamado de escândalo das emissões e alcunhado de Dieselgate, ganha rapidamente proporções globais e ainda hoje as repercussões são sentidas. A tecnologia de que os construtores automóveis europeus dependiam para cumprir a meta das 95 g/km — pouco mais de 50% das vendas de automóveis novos correspondiam a motores a gasóleo —, tornou-se, a vários níveis, tóxica.

As consequências não demoraram muito para se fazer sentir, com a quota de mercado dos Diesel a cair abaixo dos 50% em 2016, algo que não acontecia desde… 2006 (à exceção de 2009, ano em que sentimos pela primeira vez todo o impacto da crise financeira no continente). A quota ainda não parou de cair, tendo sido de 28% em 2020 — com o desaparecimento progressivo de tantos modelos equipados com motores Diesel é de esperar que continue a cair nos próximos anos.

Outra consequência foi a inversão da descida das emissões de CO2 dos automóveis novos, algo que já não acontecia em muitos anos. O vazio comercial deixado pelos motores a gasóleo começou por ser preenchido pelos motores a gasolina — menos eficientes que os motores Diesel, logo, com maiores emissões de CO2.

Porsche Diesel
Palavra “non grata”.

Além da diabolização do Diesel — mesmo estando comprovado que os motores Euro6 e sobretudo os mais recentes Euro6D, eram muito mais limpos que os Euro5 —, as ameaças (que se transformariam em certezas políticas) para banir os motores de combustão interna em várias cidades e até países, e o escrutínio (ainda) mais apertado da indústria automóvel por parte das entidades reguladoras (foi a partir daqui que entraram em cena os RDE, testes de certificação em condições reais, feitos na estrada e não no laboratório), só parecia deixar um caminho aberto à indústria: eletrificar de forma definitiva o automóvel.

NÃO PODE DEIXAR DE VER: Ascensão e queda. Toda a verdade sobre os Diesel

“Explosão” híbrida plug-in

Para esse efeito, a UE tinha definido vários incentivos, incluindo super-créditos para todos os veículos que emitissem menos de 50 g de CO2/km (ou seja, só possível com automóveis 100% elétricos e híbridos plug-in), de modo a auxiliar a indústria a cumprir as metas de redução de emissões de CO2.

Ou seja, os super-créditos permitem a um fabricante que, por cada carro com emissões abaixo das 50 g/km vendido, contasse como dois veículos em 2020 para o cálculo das emissões. Em 2021, esse multiplicador vai ser reduzido para 1,67 veículos e em 2022 para 1,33. Em 2023 os super-créditos deixam de existir.

Mitsubishi Outlander PHEV
O Mitsubishi Outlander PHEV tem sido o híbrido plug-in mais vendido na Europa.

Não admira, portanto, a “explosão” de modelos híbridos plug-in (e não os mais acessíveis híbridos convencionais) que assistimos nos últimos anos no portfólio de todos os construtores. Mais caros que os Diesel, mas mais acessíveis que os 100% elétricos, tornaram-se uma necessidade para cumprir todas as metas, preenchendo o vazio deixado pelos Diesel. Agora começamos a assistir ao passo seguinte: o aumento exponencial de modelos 100% elétricos.

Apesar destes últimos 5-6 anos tumultuosos o esforço acelerado compensou. Nem todos conseguiram cumprir as suas metas de redução das emissões, é certo, mas não ficaram longe dos seus objetivos. A enxurrada de elétricos e híbridos plug-in para os próximos anos deverá garantir o cumprimento das metas sem grandes dificuldades.

A era elétrica já começou e está a ganhar momento

A década de 2011-2020 começou com o recuperar de uma crise, vista por muitos como uma oportunidade para mudar de paradigma. Terminámos a década com uma nova crise (ainda que de outro tipo, sanitária, mas com graves consequências económicas), que também está a ser vista como uma oportunidade para, mais uma vez, mudar de paradigma.

A velocidade com que está a acontecer é estonteante, um ritmo de mudança nunca antes visto na indústria automóvel, exceção feita no início da sua história, com mais de um século.

Toda a indústria automóvel está agora mentalizada e concentrada na mobilidade elétrica e todos os anúncios e planos estratégicos que temos tido conhecimento assim o indicam. Só nos últimos 12 meses foram muitos os fabricantes a anunciar a sua intenção de, no prazo de 10-15 anos, eletrificarem todo o seu portfólio.

Volkswagen ID. Family
Volkswagen tem sido uma das principais protagonistas no arranque desta nova era elétrica.

Uma mudança que requer investimentos titânicos. Por exemplo, só o Grupo Volkswagen vai investir até 2025 cerca de 70 mil milhões de euros em eletrificação e digitalização, bem mais do que os 45 mil milhões de euros da bazuca europeia para Portugal. Já foram vários os anúncios similares por parte de outros construtores, com valores também bastante obscenos.

Para que este investimento se traduza em retorno, lucro e viabilidade da própria indústria, é imperativo que as vendas dos veículos elétricos subam substancialmente, assim como as economias de escala, para melhor distribuir os custos.

Será que foi tomada a decisão certa em apostar só numa tecnologia para esta luta épica para reduzir as emissões? Saberemos, com mais certezas, talvez, no final desta nova década que agora se inicia, e que promete ser tão ou mais agitada que a década que terminou. Mas a decisão foi tomada e agora só podemos seguir este caminho — está demasiado em jogo para agora voltar atrás ou decidir tomar outro caminho.

A era elétrica do automóvel já começou…