Crónicas Ascensão e queda. Toda a verdade sobre os Diesel

Diesel

Ascensão e queda. Toda a verdade sobre os Diesel

O futuro dos motores Diesel tem sido um dos tópicos mais quentes da indústria automóvel nos tempos mais recentes. Será que têm futuro?

Diesel Combustão

O melhor é mesmo começar pelo início. Não se preocupe, não vamos recuar até 10 de agosto de 1893, ano em que Rudolf Diesel recebeu a patente para o seu motor de combustão interna com ignição por compressão.

Para perceber a ascensão e queda dos motores Diesel na indústria automóvel, temos de avançar um século, mais precisamente até 1997, altura em que é finalmente assinado o Tratado de Quioto.

O tratado assinado pelas nações industrializadas mais ricas estipulava que deveriam reduzir as suas emissões de CO2 em 8% num período de 15 anos (usando as emissões medidas em 1990 como referência).

Volkswagen 2.0 TDI
© Volkswagen

A ascensão…

Previsivelmente, os transportes no geral e os automóveis em particular, teriam de contribuir para essa redução. Porém, para o conseguir, foram seguidos caminhos distintos, dependendo da região.

Se os construtores japoneses e americanos alocaram recursos ao desenvolvimento de automóveis híbridos e (a longo prazo) elétricos, na Europa apostou-se na tecnologia Diesel.

Era a forma mais rápida e com custos mais reduzidos para cumprir esses objetivos e, além disso, o lobby dos construtores alemães foi decisivo no seguir dessa direção.

Era praticamente uma ordem para mudar para Diesel. A frota automóvel europeia foi transformada de ser praticamente a gasolina para ser predominantemente Diesel. O Reino Unido, juntamente com a Alemanha, França e Itália, ofereceram subsídios e “adoçantes” para persuadir os construtores automóveis e o público a comprar Diesel.

Simon Birkett, diretor do grupo Clean Air London

Para mais, o motor Diesel deu saltos tecnológicos importantes durante a década de 80 e 90, fundamentais para assumir o papel principal para a redução das emissões de CO2 — a Fiat contribuiria de forma decisiva para colocar o Diesel como alternativa viável.

O motor Diesel, devido à sua maior eficiência, produzia em média menos 15% de CO2 que o motor de ciclo Otto — o mais comum dos motores com combustão com ignição por faísca.

O revés da medalha estava na produção em maiores quantidades de poluentes nocivos à saúde humana, como o dióxido de azoto (NO2) e partículas nocivas — quatro vezes e 22 vezes mais, respetivamente. Um problema que não foi debatido do modo adequado na altura.

Só em 2012 é que a OMS (Organização Mundial de Saúde) declarou que as emissões dos motores Diesel eram cancerígenas para o ser humano.

Fiat Croma
Fiat Croma. O primeiro ligeiro de passageiros com um motor Diesel de injeção direta.

Os efeitos da mudança concertada de rumo — política e tecnológica — da União Europeia e dos seus construtores, impulsionados também por vários incentivos, não se fizeram esperar muito: as vendas aceleraram e muito.

Se a meio da década de 90, as vendas de carros a gasóleo significavam pouco mais de 20% do total europeu, rapidamente essa quota subiria para mais de metade do mercado. Culminaria nos 55,7% em 2011, na Europa Ocidental.

Neste período, durante a primeira década deste século, o motor de ciclo Otto parecia ter sido esquecido. Só o motor Diesel interessava. Acabou por equipar quase tudo que tivesse quatro rodas, fizesse sentido ou não… Fosse um citadino, uma berlina de luxo, ou um coupé desportivo.

… e a queda

Se podemos apontar o escândalo das emissões Dieselgate (2015) como o momento chave para o início do fim, o destino dos Diesel já tinha sido traçado antes. O declínio previsto, contudo, deveria ter sido mais progressivo do que aquele que acabámos por assistir.

Diesel vazio

Rinaldo Rinolfi, ex-vice-presidente executivo da Fiat Powertrain Research & Tecnhology — pai de tecnologias como o common-rail ou o multiair no gigante italiano —, afirmou na altura que, com ou sem escândalo, o declínio do Diesel teria de acontecer.

Tudo devido, sobretudo, aos custos crescentes destas motorizações para estarem em conformidade com as cada vez mais rigorosas normas de emissões. Por isso, previa que os Diesel fossem ficando limitados aos segmentos mais altos, algo que acabou por acontecer.

A sua previsão era de que a procura estagnasse após a introdução da Euro 6, em 2014, e até ao final da década a sua quota se reduzisse a 40% do total do mercado.

O Dieselgate acelerou todas as previsões de Rinolfi: em 2017 a quota dos Diesel descia para 43,7% e chegaria a 2020, ao final da década, com apenas 28% — em 2022, foi de apenas 16,4% na UE.

O Dieselgate

Podemos dizer que o Dieselgate foi quase o “último prego no caixão” do motor Diesel. Estávamos em setembro de 2015 quando veio a público que o Grupo Volkswagen tinha usado um dispositivo manipulador no seu motor 2.0 TDI (EA189) nos EUA.

Este dispositivo era capaz de saber quando o carro estava a ser alvo de um teste de emissões, mudando o mapa eletrónico da gestão do motor para outra configuração, cumprindo assim, os limites de emissões impostos.

Quando o veículo regressasse à estrada, retornava ao mapa eletrónico original, oferecendo melhores consumos e performances.

2010 Volkswagen Golf TDI
© Volkswagen Volkswagen Golf 2.0 TDI.

Nos EUA o Grupo Volkswagen recebeu uma pena pesada, não só através do pagamento de uma multa, como na criação da rede de carregamento Electrify America (que ainda hoje existe).

Na Europa, onde se encontravam a maioria dos motores Diesel do grupo — à volta de 10 milhões de veículos de um total global de 11 milhões — a história foi diferente, não indo muito mais além da recolha e atualização de mais de oito milhões de veículos.

Alguns responsáveis do grupo alemão foram detidos e constituídos arguidos em vários processos avançados por associações e clientes, mas a diferença no desenrolar deste escândalo nos EUA e na Europa não podia ter sido mais distinto.

A verdade é que nos EUA já estavam «escaldados» — este era o seu segundo “Dieselgate”. Em 1998 o departamento de justiça norte-americano em nome da EPA (Agência da Proteção do Ambiente) processou os principais construtores de motores Diesel para camiões, por recorrerem a dispositivos manipuladores nos motores.

Estes dispositivos permitiam que o motor ultrapasse os limites legais de emissões nocivas à saúde humana, como as emissões de NOx ou óxidos de azoto.

A ilegalidade custou 860 milhões de euros em multas aos construtores e as leis foram alteradas para tapar todos os «buracos». A lei europeia, por outro lado, apesar de proibir o uso de dispositivos manipuladores, tinha várias excepções que tornavam a lei, essencialmente, inútil.

Dieselgate em Portugal
Estima-se que em Portugal tenham havido cerca de 125 mil veículos afetados pelo Dieselgate, e o IMT obrigou todos a serem reparados. Uma decisão que foi contestada pela DECO e muitos proprietários, após haver cada vez mais casos reportados do impacto negativo que as intervenções têm nos automóveis afetados.

Consequências

O Dieselgate acabou por custar à volta de 30 mil milhões de euros ao Grupo Volkswagen — os custos continuam a acumular, devido a vários processos que ainda não foram resolvidos.

Naturalmente, a UE adotou uma atitude mais dura para com a indústria automóvel. Para mais, testes posteriores em solo europeu revelaram que não eram apenas os modelos do Grupo Volkswagen com emissões acima do limite em condições reais.

A Comissão Europeia alterou as regras de certificação dos veículos e, no caso de irregularidades, tem agora o poder de multar os construtores até 30 mil euros por carro, numa medida semelhante à que já estava em vigor nos EUA.

Além disso, as metas de redução das emissões previstas foram reforçadas e os prazos para as cumprir ficaram mais curtos. Foram introduzidos ainda novos testes de certificação de consumos e emissões em condições reais, fora do laboratório — os testes RDE, ou Real Driving Emissions.

Talvez a reação mais badalada pouco tempo após o escândalo tenha sido o de banir os motores Diesel dos centros urbanos. As emissões NOx suplantaram claramente o tópico das emissões CO2 nesta discussão.

Sinal de proibição de circulação a carros Diesel anteriores a Euro 5 em Hamburgo
Instalação de sinal que proíbe a circulação de veículos que pré-Euro 5 em Hamburgo, Alemanha.

Foram várias as cidades europeias a apresentar planos — alguns mais realistas, outros mais fantasiosos —, para banir os motores Diesel e até os motores de combustão dos seus centros.

Dependência do Diesel

Em muito pouco tempo, os motores Diesel passaram de «anjos» a «demónios». Nos anos imediatamente após o escândalo, as vendas dos Diesel começaram a cair e colocaram os construtores europeus em dificuldades.

Não do ponto de vista comercial, pois os motores a gasolina viram as suas vendas crescer — e muito —, mas do ponto de vista do cumprimento do limite médio de emissões de CO2 de 95 g/km que estava estipulado para 2021.

A tecnologia Diesel era aquela de que a indústria automóvel europeia mais dependia para que as contas das emissões batessem certo e deixaram de poder contar com ela devido ao declínio das vendas. Em 2017 e 2018 a média de emissões de CO2 da indústria chegou mesmo a subir, após anos e anos de descida.

Land Rover Discovery Td6 HSE
O grupo Jaguar Land Rover era o que estava mais dependente das vendas das motorizações Diesel na Europa nos anos após o Dieselgate.

Os construtores europeus também não podiam contar com as vendas (rapidamente) crescentes de híbridos e elétricos, pois o volume de vendas não era suficientemente grande para que as contas batessem certo.

No final, um mix de soluções, entre uma maior oferta de veículos eletrificados (mild-hybrid e híbridos, fossem plug-in ou não), mais incentivos, nova geração de motores a gasolina (mais económica, logo menos CO2), eliminação de algumas versões ou modelos com emissões mais elevadas e até algumas «uniões de conveniência» — ex-FCA e Tesla, por exemplo —, permitiu cumprir em grande parte as metas estabelecidas.

Fim do Diesel?

Nos anos após o Dieselgate foram também vários os construtores que anunciaram o fim dos motores Diesel nas suas gamas. E muitos já o cumpriram.

No lugar dos motores Diesel vemos agora soluções eletrificadas e até veículos 100% elétricos. Os Diesel que permanecem continuam a evoluir (para cumprir normas), mas já têm os dias contados — com uma notável exceção vinda da terra do sol nascente.

Mazda CX-60 motor de seis cilindros em linha Diesel
© Thom V. Esveld / Razão Automóvel Só a Mazda para lançar um motor Diesel 100% novo em 2022, e para mais um seis cilindros em linha…

Em 2017 chegámos mesmo a anunciar que os Diesel tinham os dias contados, à conta das declarações de alguns dos líderes da indústria.

Tal não aconteceu, mas o cerco está a apertar, e após o anúncio de que a UE queria banir os motores de combustão em 2035, nem os motores a gasolina parecem ter salvação… Apesar de haver uma exceção no horizonte:

Os Diesel têm futuro? Acreditamos que sim

Se nos carros ligeiros, sobretudo os mais compactos, o fim dos motores Diesel é uma certeza — e temos de concordar que em carros que só andam em cidade não é definitivamente a melhor opção —, existem certas tipologias para os quais ainda são os mais adequados.

Os SUV, sobretudo os de maiores dimensões, continuam a ser excelentes receptáculos deste tipo de motorizações.

Além disso, os desenvolvimentos tecnológicos a que assistimos neste tipo de motorizações são fundamentais para o transporte pesado de passageiros e mercadorias — a tecnologia elétrica não é ainda um substituto viável para todos os cenários.

Uma nova página parece estar a abrir-se para a longevidade dos motores Diesel, graças a novas tecnologias desta vez relacionada com os combustíveis usados, como o gasóleo sintético ou o hidrogénio.

Será que é suficiente para garantir a sobrevivência no Diesel no mercado? A ver vamos.

Atualizado a 10 de agosto de 2023: o artigo foi originalmente publicado em 28 de maio de 2018 e foi agora atualizado com mais dados e revisto tendo em consideração eventos mais recentes.