Opinião O super homem que salvou a Renault disse adeus

Fim de uma era

O super homem que salvou a Renault disse adeus

Há homens que quando abandonam a sala, deixam um vazio maior do que quando entraram. Luca de Meo é um desses casos. Depois da FIAT, SEAT e Renault não há mais automóveis. Como vão perceber pelas minhas palavras, a sua ausência será notada.

Luca de Meo
© Renault

Conheci Luca De Meo em 2007 pouco depois de ter sido nomeado n.º 1 de marketing de todas as marcas do Grupo FIAT. 

A sua carreira tinha começado em 1992 no Grupo Renault em Itália, o seu país natal, e depois em França, até que chamou a atenção da Toyota Europa que o contratou para os seus quadros em 1999 — os japoneses estão sempre muito atentos aos talentos da indústria automóvel europeia e gostam de ter um executivo local que os mantenha próximos dos gostos dos clientes do nosso continente.

Não tardou muito até que Sergio Marchionne, o carismático líder do Grupo FIAT — também conhecido pela sua inseparável camisola azul e o seu inglês irrepreensível, ajudado por ter também nacionalidade e vivência no Canadá —, o tivesse conseguido seduzir para chefiar a Lancia, em 2002, e, sucessivamente, FIAT e Alfa Romeo. 

Luca de Meo, diretor executivo da Renault, na entrega de prémio do Car of the Year
© Event Photos Luca de Meo, diretor executivo da Renault, na entrega do prémio do Car of the Year 2024, atribuído ao Scenic. Repetiria a proeza em 2025, com o Renault 5.

Vestir a camisola

Recordo-me de o ver, precisamente em 2007, com uma camisola com o número 500 num dos eventos de lançamento da FIAT, destinados a promover o ressuscitado citadino italiano. Foi, porventura, o projeto singular de maior sucesso de toda a carreira de quase três décadas do italiano nascido em Milão em 1967.

A fórmula do FIAT 500 era brilhante: design rétro — era tão bom que só em 2024 o carro saiu de produção e por razões regulamentares, já que em termos estilísticos parecia ter caído à nascença no caldeirão do elixir da juventude —, aura de clássico moderno, posicionamento de preço elevado para a marca FIAT, a permitir margens de lucro inusitadas para o consórcio de Turim. E muito menos num automóvel do segmento A, com apenas três portas.

Quando a sua produção cessou em 2024, o 500 tinha vendido mais de três milhões de unidades e fica nos livros de história como o carro que salvou a FIAT no início deste século. Ironia do destino: o modelo original, de 1957, esteve em produção praticamente o mesmo tempo (18 anos) e com um volume de produção total similar (3,89 milhões).

ilustração FIAT 500 de 2007 com Nuova 500 de 1957 atrás
© FIAT Separados por meio século, mas ambos os 500 partilham um legado de enorme sucesso.

O seu sucesso comercial e a sua imagem eram tão fortes que quase não parecia ser um FIAT… ao ponto de De Meo ter até considerado criar uma submarca 500 para que este modelo não fosse manchado pelo resto da família.

Isso não chegou a acontecer, mas De Meo ainda lançou outra sub-marca, a Abarth, antes de sair do grupo italiano.

Abarth 595 2021
Abarth 595C Turismo e 595 Competizione

Nesta altura eram relativamente frequentes os momentos em que tinha o privilégio de conviver com De Meo. Recordo-me de uma inesquecível noite de espetáculo no anfiteatro aberto da centenária Ópera de Verona, precedido de um jantar numa mesa a quatro (acompanhados das respetivas senhoras) e de algumas reuniões top secret onde procurava validar a sua estratégia de produto para a FIAT.

Num dos casos, a dúvida era se o 500 deveria ter uma versão totalmente descapotável ou um semi-cabrio com um teto de lona de abrir: a primeira seria 5000 euros mais caras, enquanto a segunda acrescentaria menos de metade do preço. Hoje, como sabemos, a última opção foi a escolhida.

Noutro caso, fiquei a conhecer, com dois anos de antecedência, os motores de dois cilindros que a FIAT estava a desenvolver em 2008… Um embargo protegia a FIAT e amordaçava-me a mim.

O Luca de Meo reunia qualidades — e reúne, porque está vivo e recomenda-se, apenas deixou o automóvel para se dedicar (a partir de setembro) à indústria de moda de luxo, no Grupo Kering que detém griffes como a Gucci e várias outras —, que só podiam ter dado no que deram.

Um grande conhecedor do automóvel (os anglo-saxónicos chamam a isto um car guy), um sagaz descodificador das tendências do mercado e um criativo comunicador… técnica, marketing e comunicação, all in one.

Um voo revela o segredo

Sempre senti grande empatia com a sua forma de estar e admirei a sua avançada visão, muito mais inspiradora do que a da maioria dos grandes líderes de marcas que conheci nas quase três décadas que trabalho neste setor. E respeito atrai respeito.

Luca de Meo com Joaquim Oliveira
Uma de várias vezes em que estive à mesa com Luca de Meo.

Um dos episódios mais divertidos aconteceu em 2009, quando saiu, subitamente, do Grupo FIAT e o mundo especulava qual seria o seu destino. Havia muitos que apontavam ao Grupo Volkswagen como o seu novo provável empregador. Era o rumor da transferência do ano.

Estava eu sentado num voo noturno de um domingo de final de agosto de Frankfurt para Hanover e sinto que um passageiro retardatário se senta ao meu lado, mesmo a tempo de ouvir “embarque completo”. Olho-o de relance, primeiro, e encaro-o de frente logo a seguir: “Lucaaaaaa!!!!!. A minha satisfação não teve qualquer tipo de reciprocidade: “porca miseria…” soltou no seu milanês empedernido, não porque não me gostasse de rever, mas por achar que lá se ia o segredo tão bem guardado.

Quem, a não ser um funcionário do Grupo Volkswagen, estaria num voo para Hanover (aeroporto que serve a cidade-mãe da marca) às 23h00 de um domingo de final de agosto? “Se contas a alguém que me encontraste neste voo ponho-te uma cabeça de cavalo na cama do hotel!!!”.

A ameaça de intimidação praticada pela mafia italiana (e usada por Coppola no filme “O Padrinho”) era ainda mais divertida por Luca ser italiano, mas não teve consequências. Primeiro porque era apenas isso, uma piada a lamentar a inconveniente coincidência, segundo porque guardei para mim aquele encontro e a conversa divertida de um voo de menos de uma hora, que não mais esqueci.

Volkswagen e Renault

Daí para a frente, De Meo continuou a acumular sucessos. Primeiro na direção de marketing da Audi, depois de todo o Grupo Volkswagen e posteriormente como diretor-executivo da SEAT e, mais tarde, da CUPRA (entre 2015 e 2020), que criou como sub-marca primeiro e como marca autónoma depois, replicando a fórmula Abarth de uns anos antes.

Luca de Meo com modelo do SEAT Ateca
© SEAT Após a entrada no Grupo Volkswagen, não foi preciso esperar muitos anos para ser colocado na posição de líder da SEAT.

Poucas semanas depois de ter sido nomeado presidente da marca espanhola, vivemos outro momento de boa disposição e também revelador da confiança que existia.

Numa mesa-redonda com meia dúzia de jornalistas na mesa de reuniões do seu escritório em Martorell (sede da SEAT), trocámos umas impressões antes da sessão de perguntas-respostas e dos gravadores estarem ligados.

Dou-lhe os parabéns por chegar a CEO de uma marca, tendo ele apenas (na altura) 47 anos: “Impressionante, Luca, temos a mesma idade e tu já és presidente de uma marca e eu um simples jornalista”, brinquei, ao que respondeu atiçando a brincadeira: “sim… e ainda por cima um péssimo jornalista!!!”.

Seguiu-se a presidência do Grupo Renault e o seu conhecido plano de recuperação Renaulution (como sempre, criativo e eficaz) de uma marca quase defunta. De prejuízos chorudos — acabado de chegar a Paris, apresentou perdas de sete mil milhões de euros na sua primeira conferência de resultados, em julho de 2020 —, a lucros confortáveis de mais de quatro milhões no final do ano passado.

Luca de Meo com protótipo do Renault 5
Um dos grandes legados deixados por Luca de Meo no Grupo Renault: o novo Renault 5.

Tudo pareceu simples para Luca de Meo, que agora deixa os automóveis para levar uma vida mais tranquila, no setor do luxo puro e onde a sua visão, inteligência, capacidade de liderança e criatividade não serão menos úteis.

Os títulos de aluno do ano na Universidade de Bocconi (Milão), de commendatore pela Ordem de Mérito da República Italiana, a Grande Cruz da Ordem de Isabel a Católica ou o “caso de estudo” que foi considerado pela Universidade de Harvard seguramente o deixam tão orgulhoso ainda hoje como o facto de ficar nos livros de história com o “salvador” das marcas FIAT e Renault, que definhavam quando as começou a trabalhar.

Foi esse o espírito que nele se revelou muito cedo ao apresentar a sua tese de final de curso sobre “A ética nas empresas”, que se tornou uma das primeiras dissertações em Itália sobre um assunto hoje, mais de duas décadas mais tarde, tão atual.

Arrivederci e auguri Luca, por muito que a tua competência ainda pudesse vir a ser necessária para salvar algumas marcas num futuro não tão distante quanto isso.