Crónicas Rali da Guarda: o disfarce perfeito…

Rali da Guarda

Rali da Guarda: o disfarce perfeito…

Durante um fim de semana, cerca de 60 carros carregados de terroristas invadiram a Forte, Farta, Fria, Fiel e Formosa cidade da Guarda. Sim, isso mesmo, terroristas. O disfarce não podia ser melhor...

Demorou mais de uma semana para eu e o Diogo nos recompormos do Rali de Guarda. Confesso que só agora consegui ganhar fôlego para escrever umas linhas sobre tudo o que lá se passou. E não, não foi só porque fizemos a viagem para a Guarda — ida e volta, sem contar com o rali… — ao volante de um Honda S800 de 1968. Foi, acima de tudo, porque não estávamos preparados para o que encontrámos na Guarda.

Desde de 1988 que o Clube Escape Livre (organização que dispensa apresentações…) organiza o Rali da Guarda. Rali que na verdade não é um rali. O nome “Rali Banco BIC Guarda 2015” é só um disfarce para juntar na Guarda um grupo de pessoas — ou terroristas… — com propósitos que vão para além da competição automóvel. Mas já lá vamos. Primeiro a viagem…

Lisboa-Guarda num Honda S800

Há ideias mais mirabolantes, mas ir para Guarda num Honda S800 não é propriamente um sinal de sanidade. A verdade é que o Honda chegou à Guarda inteiro, nós é que… enfim. Ainda não tinha chegado à zona do Carregado e já me dobrava no acanhado banco para tentar contornar o desconforto na coluna. Cerca de 100 km depois já não sentia dores, talvez anestesiado pelos vapores de gasolina e gases de escape que discretamente invadiam o habitáculo do Honda. Os japoneses pensam em tudo…

Falando do carro, o motor de 800 cm3 e 70 cv portou-se com galhardia. A viagem fez-se sempre numa toada relativamente rápida, cerca de 90-100 km/h, por volta das 5000 rpm, até à Guarda — nem as subidas da cidade mais alta do país lhe fizeram frente. Dizem que este carro atinge os 160 km/h, não tentámos por motivos óbvios.

Chegados à Guarda, era altura de tirar as malas e descansar para o dia seguinte. Aparentemente tínhamos sobrevivido à experiência.

Eram seis horas da manhã quando o despertador tocou. Passado o efeito dos gases de escape, as dores da viagem instalaram-se confortavelmente nos sítios mais desconfortáveis que possam imaginar. Não tivesse eu a certeza que pernoitei no hotel e diria que tínhamos sido apanhados no meio de um confronto entre duas claques de futebol poucas horas antes. Sei muito bem a quem atribuir as culpas destas dores: ao Honda S800.

Foi ao abrir a porta do quarto que o meu Rali da Guarda começou. Tinha a porta do quarto forrada a plástico e lá em baixo, o pobre Honda S800 (que as minhas costas aprenderam a odiar) estava cheio de autocolantes e enfeites vários.

Não fazíamos ideia que este tipo de brincadeiras tinham lugar num evento que já leva 27 anos de existência e que reúne diretores de marcas, jornalistas, pilotos e mais um sem fim de pessoas ligadas ao mundo automóvel. Pessoas que nos habituámos a ver noutros registos e que aqui, bem… São pessoas normais como eu e tu — se bem que nós somos pouco normais.

Depois de termos tirado todos os enfeites do carro, partimos com entusiasmo para a primeira especial do Rali, que mais não foi do que um passeio pelas melhores estradas e locais da Guarda. Ou por outras palavras, mais 80 km de sadomasoquismo ao volante do Honda S800. Sim, sadomasoquismo porque às tantas já estávamos a gostar de sofrer… O S800 casa bem com estradas de serra e aquele motor hiper-rotativo dá um gozo tremendo quando explorado em estradas desafiantes.

Parámos para almoçar e depois de um agradável repasto, fizemos um rali paper pelos locais mais emblemáticos da cidade. Chegámos ao fim do dia completamente estourados. Eu e o Diogo. Sim, porque o Honda S800 continuava forte, fiel e formoso como a cidade da Guarda. O Honda S800 revelou uma fibra que só tinha réplica nos participantes mais experientes deste rali. Como disse um ilustre jornalista automóvel da nossa praça (o nome começa “Rui” e acaba em “Pelejão”): “aqui os melhores, costumam ser os jovens com mais de 60 anos”. E são mesmo.  O dia chegou ao fim e já tínhamos entrado no espírito do Rali da Guarda: convívio, boa disposição e conversas de automóveis. As gargalhadas e as piadas eram os únicos sons que se sobrepunham ao barulho dos motores.

Mais do que os automóveis ou a competição, os propósitos do Rali da Guarda são outros: ser um embaixador da região; juntar profissionais do setor, dos mais diversos quadrantes; divulgar as marcas associadas; e fazer com que os participantes levem recordações. Olhando à distância de uma semana, conseguiu tudo isso e muito mais. As nossas costas que o digam…

Domingo, dia de todas as emoções

Mais um dia, mais uma voltinha. Voltámos a acordar com recordações espalhadas pelo carro, hotel e afins. Soube posteriormente que na noite anterior, até me serviram um paté com ração de gato! Como em todos os grupos, há sempre um grupo de rebeldes que se dedicam às mais diversas travessuras. O problema do Rali da Guarda é que aqui este grupo de rebeldes — ou terroristas, como teimava em chamar o senhor da recepção do hotel — são a regra e não a exceção. As partidas (de bom gosto) são uma constante, e durante o fim-de-semana estenderam-se a toda a cidade.

Cheguei a perguntar-me: mas estes jovens mais velhos não dormem? São os piores… Depois de termos (uma vez mais!) desarmadilhado o Honda S800 partimos em direção à primeira e única prova cronometrada: um slalom no centro da cidade. Não fosse uma penalização por derrube de um pino e a equipa Razão Automóvel e o Honda S800 tinha arrancado um honroso 6º lugar.

Foi a primeira vez que sentimos a tensão da competição no ar. Pelo menos para alguns, nomeadamente para Francisco Carvalho, o piloto mais vitorioso de sempre na prova. Enquanto alguns participantes aproveitavam para descomprimir, Francisco Carvalho notava-se que era um homem com uma missão. O sorriso constante do fim-de-semana tinha ficado no hotel e só voltámos a ver-lhe os dentes depois de saber que tinha vencido — para o ano somos nós Francisco… fica o alerta!

O dia terminou com um almoço onde foram distinguidos os vencedores, atribuídos prémios pela organização e onde, uma vez mais, todos agradeceram ao responsável de prova pelo excelente rali: o incontornável Luís Celínio do Clube Escape Livre.

Hora de regressar a Lisboa

Conseguimos chegar à Guarda e fazer o rali. Portanto, só faltava mesmo conseguir chegar a casa. Não foi fácil. Dividimos o percurso em quatro etapas, duas para mim, duas para o Diogo e aí fomos nós. Ainda não tínhamos meia hora de caminho e o pequeno Honda S800 começou a perder força. Ao mesmo tempo um ligeiro cheiro a queimado invadiu o habitáculo. A temperatura estava ok, os níveis estavam todos impecáveis… mas que raio!

Mais 2 km para despiste do sucedido e conseguimos descobrir a origem do problema. Um curto-circuito no farol dianteiro estava a roubar potência às velas de ignição. O problema é que não tínhamos nem alicate nem fita isoladora. Valeu-nos a assistência em viagem da concessionária da auto-estrada que nos emprestou um alicate.

A fita isoladora foi reaproveitada de outros cabos et voilá! Sem luz da frente mas de volta à estrada. A máquina vive!!!

Foi uma corrida contra o Sol até Lisboa. Tínhamos de chegar antes do anoitecer e conseguimos. Para baixo todos os santos ajudam e fizemos um tempo canhão desde a cidade mais alta do país até à cidade mais esburacada do país: Lisboa.

Tirámos as coisas do carro, esticámos as costas e olhámos para o Honda S800 com orgulho: a pequena máquina aguentou tudo! Nós nem por isso. Mas fica a promessa de que para o ano vamos voltar ao Rali da Guarda mais preparados que nunca. Os terroristas que assombraram a cidade da Guarda e preconizaram ataques cerrados à nossa viatura, comida e quartos vão ter a sua réplica. O Rali da Guarda foi o disfarce perfeito para levarem a cabo estes ataques, mas aguardem porque… para o ano há mais!

Um agradecimento ao Clube Escape Livre e às marcas que apoiaram o evento, bem como a todos os participantes pelo fantástico fim-de-semana que nos proporcionaram. Agora aguardem pela conta do fisioterapeuta nas vossas caixas de correio…

Rali da Guarda
20º Rali da Guarda, Guilherme Costa e Diogo Teixeira, Honda S800

Imagens: Clube Escape Livre / NewsMotorSports