Notícias Dieselgate e emissões: o esclarecimento possível

Dieselgate e emissões: o esclarecimento possível

Duas semanas após o anúncio de que a Volkswagen manipulou os testes das emissões de um dos seus motores diesel nos EUA, e toda a consequente discussão gerada à volta da temática das emissões, obriga-nos a desmistificar e destrançar uma mixórdia de temáticas, que são, erradamente, discutidas em simultâneo. Vamos a isso?

Facto: a Volkswagen assumiu a fraude

Não é uma conspiração americana. E não, não surgiu do nada. Faz 18 meses que os resultados dos primeiros testes foram conhecidos, revelando discrepâncias brutais (até 40 vezes mais) nas emissões de NOx verificadas em laboratório e em estrada. Chegou a ser efectuada uma operação de recolha dos veículos diesel afectados nos EUA, onde uma reprogramação, teoricamente, resolveria o problema. Testes posteriores revelaram de que nada mudou.

E a posição da Volkswagen foi sempre de negação sobre eventual fraude cometida. As evidências, cada vez mais indefensáveis, levaram a Volkswagen a assumir oficialmente o logro, em que recorreu a um defeat device – neste caso, a programação que permite apresentar um mapa de gestão distinto do motor quando em testes de emissões – dispositivo proibido nos EUA, para contornar as normas de emissões americanas delineadas pela EPA (Environment Protection Agency, ou Agência de Protecção Ambiental).

Posto isto, esqueçamos a questão das emissões por momentos, o que permite clarificar o acto e apenas o acto fraudulento cometido.

Quando uma marca apresenta um novo modelo este tem de respeitar uma série de requisitos e regulamentos, para ser devidamente homologado e autorizada a sua comercialização no mercado. A Volkswagen decidiu, deliberadamente, ludibriar os testes de homologação, ao não ter uma solução viável para o cumprimento de um desses requisitos. Ou seja, durante os testes de homologação, o automóvel comportava-se de maneira legal, garantindo a tão necessária homologação, mas, quando fora deste ambiente de teste, apresentava comportamento distinto, em total incumprimento de alguns dos requisitos.

A melhor definição para os automóveis do séc. XXI é considerá-los computadores rolantes. Como tal, muito dos aspectos do funcionamento do nosso automóvel estão dependentes de uma multiplicidade de sensores que enviam de forma ininterrupta um número infindável de dados, interpretados por um “cérebro electrónico”, adaptando o comportamento dos vários sistemas às condições analisadas. Tanto pode afectar o comportamento de sistemas de segurança activa, como controlos de tracção e estabilidade, como pode alterar parâmetros da gestão do motor.

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Graças às “artes negras” da programação, quando detectadas uma série de condições, o automóvel “percebia” que estava num teste de emissões e alterava diversos parâmetros da gestão do motor.

Facto: a fraude, para já, limita-se apenas e só aos EUA

Foi apenas nos EUA que a fraude foi detectada e assumida. Apesar dos 11 milhões de motores da família EA189 espalhados pelo globo que deverão ter o defeat device (o tal software fraudulento…), ainda carece de confirmação pela Volkswagen, ou entidades reguladoras europeias, de que o mesmo método foi usado pelo grupo para conseguir a homologação e cumprimento da norma Euro 5 – a norma em vigor na Europa à data.

Isto é, pode dar-se caso dos motores EA189 na Europa com ou sem defeat device cumprirem a legislação ambiental. Tudo o resto é pura especulação. Desde o comportamento fraudulento de outros construtores como eventuais fraudes cometidas no continente europeu. A discrepância entre os valores oficiais e os reais de consumos e emissões de CO2 é uma discussão totalmente distinta.

O nebuloso universo das emissões

Não há volta a dar. Independentemente do tipo de motor de combustão interna, haverá sempre uma expulsão variada de gases pelo sistema de escape. As normas existem para controlar, na medida do possível, o que é expelido pelos sistema de escape. Tudo isto complica-se pela ausência de um padrão global.

Nos EUA, as motorizações diesel têm de cumprir normas de emissões bastante mais restritivas que as existentes na Europa. A norma Euro 6, que entrou em vigor o mês passado, permitiu uma aproximação às normas americanas, mas ainda assim, são mais permissivas que estas.

As maiores discrepâncias referem-se aos óxidos de azoto, o infame NOx, que engloba o NO (monóxido de azoto) e NO2 (dióxido de azoto). A norma americana, já em 2009, limitava as emissões de NOx em 0.043 g/km, enquanto a Euro 5 permitia 0.18 g/km, mais de quatro vezes acima. A recente Euro 6, mais rigorosa, permite 0.08 g/km, mesmo assim, quase o dobro da norma americana.

De tudo o que é expelido após a combustão do combustível num motor diesel, o NOx é o principal contribuinte para a formação das chuvas ácidas e do nevoeiro fotoquímico. O dióxido de azoto (NO2) pode causar irritações nos pulmões e diminuir a resistência às infecções respiratórias. Crianças e idosos, e pessoas com doenças respiratórias são os mais sensíveis a estes poluentes.

Estes compostos formam-se por combinação dos átomos de azoto e de oxigénio da atmosfera, em condições de alta temperatura e alta pressão, na combustão dos motores dos automóveis. Devido à natureza intrínseca dos motores diesel, é onde encontramos o maior potencial de criação destes compostos.

Já existem diversas tecnologias para controlar a emissão de NOx. Através das válvulas EGR (Exhaust Gas Recirculation ou Recirculação dos Gases de Escape), armadilhas de NOx, ou sistemas de redução catalítica selectiva (SCR).

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Nos EUA, a única solução viável para as apertadas normas, sem sacrificar consumos ou performance, obriga a equipar os diesel com SCR, que recorre à injecção de uma solução à base de ureia e água destilada, mais conhecida por AdBlue, nos gases de escape. Permite reduzir eficazmente até 90% das emissões de NOx, decompondo o composto em azoto diatómico e água. Claro que acrescenta custos acrescidos, não só para o construtor, como também para o consumidor, que tem de ir atestando o depósito de X em X kms.

Porquê, Volkswagen, porquê? O barato sai caro…

Deve ser a pergunta que todos fazem ao tentar perceber porque é que um dos mais poderosos grupos automóveis decidiu seguir a via do facilitismo. Como referi antes, sem SCR é praticamente impossível conseguir respeitar as normas referentes ao NOx nos EUA. A Volkswagen afirmou, em 2008, que o seu 2.0 TDI não necessitava do aparato extra para cumprir as normas vigentes. E os testes de homologação demonstraram-no.

Não recorrer a este sistema, permitiu à Volkswagen responder atempadamente com uma alternativa “verde” ao sucesso do híbrido Toyota Prius, e, no processo, poupou cerca de 300€ por veículo produzido. Em isolamento, mas multiplicando pelos 482 mil veículos vendidos com este motor nos EUA, significa um encaixe de 144.600.000 milhões de euros.

A decisão tomada pela Volkswagen pode-se justificar, resumidamente, pela incapacidade de cumprir a norma exigida e simultaneamente cumprir metas internas de custos. O dinheiro poupado parece insignificante aos números já anunciados para cobrir os estragos provocados. Já foram colocados de parte os 6,5 mil milhões de euros e mesmo assim poderão revelar-se insuficientes, após o pagamento de multas, custos legais devido ao crescente número de processos contra o grupo, e prováveis operações de recolha dos veículos afectados.

Mixórdia de…emissões

A fraude da Volkswagen assumiu proporções globais e extraordinariamente épicas quando se soube que até 11 milhões de motores poderiam ter a programação fraudulenta. Tudo foi colocado em causa, desde a controvérsia à volta dos consumos e emissões anunciados, aos próprios diesel e possíveis fraudes por outros construtores. Misturou-se o CO2 com o NOx, até receios de pagar mais IUC.

Primeiro que tudo, os automóveis com esta família de motores, os EA189 – já subsitituidos pelos EA288, cumpridores da Euro 6-, compreendendo os motores 1.2, 1.6 e 2.0, não apresentam problemas de funcionamento nem põem em risco a segurança dos seus ocupantes. Se o leitor é um dos que tem um modelo da Volkswagen, Audi, Seat ou Skoda com motores desta família, o seu automóvel funciona tão bem agora como antes. As consequências da manobra da Volkswagen poderá ter efeitos no valor de revenda, e, como já acontece em alguns países, existe uma proibição efectiva na comercialização destes veículos até haver mais esclarecimentos ou eventual operação de recolha.

De seguida, não coloquemos em paridade as emissões de CO2 e de NOx. As emissões de CO2, aquelas às quais foram impostas metas para os construtores alcançarem, são as únicas taxadas pelos mais variados governos. As de NOx não, pelo menos para já. Os receios de haver aumento de pagamento de IUC para os modelos afectados são completamente infundados.

A manipulação dos testes de emissões pela Volkswagen não implicam um valor real de CO2 emitido superior ao anunciado. Na realidade, o inverso é o mais provável. Dispensando o SCR, a solução para manter as emissões de NOx dentro das normas seria limitar a performance do motor, recorrendo a uma acção acrescida da EGR, pressão inferior do turbo e qualquer outra medida que permita baixar a temperatura no interior da câmara de combustão. Medidas que foram precisamente as efectuadas para contornar os testes de emissões nos EUA.

Ironicamente, o efeito adverso seria o possível aumento das emissões de CO2 e consumos, assim como performances inferiores. Algo que poderia retirar o apelo comercial do diesel “limpo” no mercado americano, tradicionalmente não adepto desta tecnologia. Ou seja, a acontecer uma operação de recolha dos veículos afectados para ficarem em conformidade com os parâmetros impostos, uma possível consequência será o carro ficar mais lento e gastador.

Mas para já é apenas especulação, convém esperar pelos anúncios oficiais da Volkswagen e compreender que medidas em concreto serão adoptadas.

A fraude foi nos EUA. Então o que se discute na Europa?

A discussão levantada na Europa começou nas emissões, não só da Volkswagen como de outros construtores, e o assunto acabou por divergir para a crescente discrepância entre emissões de CO2, consumos anunciados e os que são verificados efectivamente em condições reais. Uma discussão que pouco ou nada tem a ver com o cumprimento das emissões NOx ou com a fraude.

A Volkswagen ludibriou as entidades americanas sobre as emissões NOx, consequentemente garantindo consumos e emissões de CO2 mais baixas. Mas nem a própria Volkswagen foi capaz de afirmar se o dispositivo chegou a ser activado no processo de homologação no continente europeu, devido à diversidade existente na família EA189.

Existem diversas cilindradas com diversos patamares de potência em cada uma delas, e podem ser casados com diferentes tipos de transmissão, pelo que a activação do dispositivo em testes de emissões em algumas das variantes pode não ter ocorrido dado as variáveis distintas. Esta confusão entre a fraude cometida, o NOx e o CO2, os consumos anunciados e reais, gerada pelos media e até entidades governamentais, trouxe suspeitas acrescidas sobre os construtores.

Existem uma série de estudos revelados nos últimos anos, o último dos quais apresentado uma semana antes do escândalo rebentar, que demonstram uma crescente discrepância entre os valores de consumos e emissões de CO2 anunciados e os que são verificados em estrada, com as diferenças a atingirem 60% em alguns casos. No entanto, estes estudos expõem mais as lacunas do NEDC (New European Driving Cycle), teste onde se obtém os valores de consumos e emissões de CO2 que conhecemos e nos vendem.

Este ciclo teve a sua última actualização em 1997, e permite toda uma série de manobras e truques que, ainda que legais, permite a apresentação de um cenário bem mais “verde” que o real. Podemos condená-los de um ponto de vista moral e ético, por anunciarem consumos e emissões utópicos, e publicitando descaradamente a sua contribuição para um futuro mais limpo, mas, legalmente, não existe fraude. Precisamos de melhores regulamentos, definitivamente!

O NEDC deverá ser substituído pelo WLTP (Worldwide harmonized Light vehicles Test Procedures), que criará um padrão entre a Europa, Japão e Índia e deverá ser mais aproximado à realidade. O escândalo Volkswagen poderá, consequentemente, não só acelerar a introdução deste novo teste, como endurecer as medidas relacionadas com ele. Só que esta é uma discussão à parte.

A questão fulcral discutida foi o cometer de uma fraude durante anos por parte da Volkswagen, enganando reguladores, clientes e até concorrentes. Não só lucrou com essa medida, como tratou-se de concorrência desleal.

Como exemplo, Honda e Nissan também tinham planos para a introdução de motores diesel acessíveis, concorrentes do 2.0 da Volkswagen nos EUA, mas desistiram das suas intenções. As razões, percebe-se mais claramente agora, também são as mesmas que tem levado a Mazda a adiar, já por dois anos, a introdução do seu motor diesel Skyactiv no mercado americano.

Esperamos com este artigo (mais longo do que o que desejávamos) ter contribuído para a desmistificação daquilo que se está a passar não só na Volkswagen, mas em toda a indústria automóvel.